Nos últimos anos, a chef de cozinha Bel Coelho se dedicou a dois projetos: percorrer o Brasil em busca de ingredientes regionais que pudesse inspirar novos pratos e organizar a agenda para conseguir cuidar dos filhos. Toda a bagagem de viagens e pesquisa se materializou na série “Assiete Brésilienne” para o canal franco-alemão Arte (exibido também no canal a cabo TLC como “Receita de Viagem com Bel Coelho”). Também deu inspiração para Bel ousar no cardápio de seu restaurante Clandestino, que abre apenas uma semana por mês e oferece um único menu-degustação com aproximadamente 10 pratos – quase todos com algum ingrediente descoberto em suas viagens pelos biomas brasileiros. Quando não está servindo ou criando os pratos, Bel se divide entre os dois filhos (um de 1 ano e outro de 4), aulas, palestras e eventos especiais, como a aula de culinária que lecionou por dois fins de semana dentro do projeto Transamérica Mundi, festival de gastronomia do Hotel Transamérica, que explora a culinária de seis países – e de onde ela concedeu essa entrevista exclusiva ao Plano Feminino. Confira:

 

Plano Feminino: Você passou meses percorrendo dezenas de cidades Brasil afora para desbravar os sabores e pratos locais para o programa do canal Arte. O que te motivou a fazer esse projeto?

Bel Coelho: Eu viajei para gravar o programa de TV e achei que a melhor divisão seria por ecossistemas ativos. Os biomas [Amazônia, Cerrado, Mata Atlântica, Caatinga, Pampa e Pantanal] passam exatamente a mensagem que eu queria passar, que é de que nós precisamos consumir mais produtos nativos. Quando se fala em biomas, riquezas brasileiras, as pessoas têm mais empatia pelas matas e recursos naturais.

Plano Feminino: Você já tinha trabalhado antes com ingredientes naturais genuinamente brasileiros?

Bel Coelho: Sempre gostei. Apesar de ter começado em uma cozinha francesa, com técnicas francesas, meu interesse pessoal no assunto foi crescendo. Trabalhar com o Alexa Atala (chefe do premiado D.O.M.) também fez diferença.

 

 

Plano Feminino: Algo te surpreendeu nessas viagens?

Bel: O mais diferente da nossa realidade foi conviver com indígenas, uma realidade completamente diferente da nossa, de subsistência, mas com um enorme senso de comunidade que falta no nosso mundo moderno. Quando chega a caça, por exemplo, eles preparam tudo, dividem as tarefas e compartilham a comida. Não existe individualismo. Não tem essa de você só cuidar de você e do seu núcleo familiar. Você compartilha tudo. É natural para eles.

Plano Feminino: E qual foi a maior dificuldade?

Bel: Foi estar grávida. Quando comecei eu já estava grávida do Francisco, meu primeiro filho, e essas viagens são, em geral, muito cansativas e desconfortáveis. Além de pegar muito ônibus, van, ficar muito tempo na estrada, tinham os passeios na própria mata e em tribos indígenas. Foi enriquecedor, mas um desafio.

 

 

Plano Feminino: Uma das questões mais discutidas hoje é a maternidade e o trabalho. Como você equacionou isso?

Bel: Deixar ou não de trabalhar após a gravidez é uma questão para qualquer mulher. No caso do Francisco, meu primeiro filho, eu consegui ficar seis meses com ele, com o apoio do meu marido. Mas com o José, meu filho mais novo, eu não consegui, precisei trabalhar. A própria decisão de só abrir uma semana por mês o Clandestino, meu restaurante, foi pensado para me dar mais flexibilidade. Fiz em um formato compatível para meu momento de vida. Abro uma semana por mês e no intervalo dou aulas e cursos. Mas, sou dona do meu tempo de alguma forma.

Eu acho que as mulheres têm que ser livres. Óbvio que algumas não são porque não têm escolha, precisam trabalhar. Ou, às vezes, têm um companheiro que não ajuda ou até que a abandonou. Muitas responsabilidades sempre recaem sobre a mulher.

Eu acho que temos que prestar menos atenção nas críticas e mais na sociedade, que não ampara a mãe e o bebê. O mercado de trabalho, as empresas, e a sociedade como um todo, precisam amparar as mães porque esta é a próxima geração e, se quisermos uma geração mais solidária, coletivista, educada, deveríamos prestar atenção no início da vida, na primeira infância, dos primeiros anos e vida, quando o cérebro começa a ser moldado. Mas pai é fundamental também. A rede é fundamental, que envolve avôs, por exemplo. Todo mundo pode ajudar.

Plano Feminino: Apesar de termos chefs mulheres reconhecidas internacionalmente, o ambiente da gastronomia ainda é muito masculino. Isso está mudando?

Bel: Sim, tem um fórum global que acontece na Europa só para chefs mulheres. Está melhorando. O Brasil é um dos países que mais têm chefs mulheres renomadas, mesmo assim, ainda é muito machista. A minha formação foi nos EUA (Culinary Institute of America) e 60% da classe era homem. Isso no país mais avançado do mundo, onde a mulher já é empoderada há mais tempo. Mesmo assim, não tem apoio da sociedade. O mercado é que manda, não o humanismo.

Plano Feminino: Você se descobriu chefe como vocação cedo, com 17 anos e chegou a começar a faculdade de Psicologia antes de abandonar e seguir a vocação. Você acha que ainda há preconceito dos pais em deixar os filhos seguirem gastronomia como uma carreira?

Bel: Como está na moda, estão aceitando melhor, até achando legal. Tem muitos programas de TV sobre o assunto, as pessoas estão cozinhando mais e comprando menos comida pronta. Mas isso também é perigoso. Pode causar uma imagem equivocada da profissão. Primeiro que não é todo mundo que vai ter glamour e holofote. É uma profissão dura, de agenda extensa, tem que trabalhar feriado, fim de semana, à noite, trabalhar no momento em que todo mundo está curtindo. E tem o esforço físico mesmo, de carregar caixas e coisas o tempo todo, além do mental.

 

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